Não é tradição, é selvajaria

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Eu já tinha ouvido falar da Queima do Gato, mas tinha lido que a selvática tradição de imolar um animal pelo fogo depois de o aprisionar no alto de uma árvore ou de um poste coberto de palha, tinha sido revista, tendo a população de Mourão, Vila Flor, passado a usar um gato de pano ou peluche para manter vivo um dos divertimentos desta festa tradicional. Uma opção inteligente: qualquer sacrifício animal para fins de superstição ou entretenimento será sempre uma estupidez, seja nos tempos medievais ou agora. Estamos no século XXI e, supostamente, o tempo tende a tornar-nos a todos mais civilizados. Certo?

Talvez não.

O que eu sei é que um vídeo da Queima do Gato de Mourão começou a circular pelas redes sociais. E o mais incrível é que não é um video de denúncia. É uma reportagem feita, creio eu, pela organização das festas mostrando, orgulhosamente, cenas de bailarico e terminando como um filme de terror: com a população a assistir, divertida, ao momento em que, no fim de contas, um gato real, não um peluche, é aterrorizado a uma altura tremenda, quando os foliões de Mourão deitam fogo a uma quantidade de palha que envolve a árvore ou o poste em cujo topo o animal foi colocado, e depois riem e comentam o que se passa a seguir: as chamas subindo a velocidade alucinante, o gato em pânico lá no cimo, a multidão divertindo-se com a dúvida: será que ele salta? Será que ele arde?

O gato, desesperado, acaba por saltar daquela altura gigantesca – gigantesca até mesmo para os dotes de salto de um gato – e, mais terrível ainda, salta de lá e foge em chamas. E o povo ri. E celebra. Numa pesquisa que fiz no Google sobre esta tradição, encontrei um depoimento de um idiota qualquer que dizia, sobre a tradição da Queima do Gato (que, no fim de contas, parece ter largado oficialmente o boneco para regressar à tortura de um animal real): “Calma, que não acontece nada ao gato – a não ser um grande susto!”

Permitam-me discordar desta frase imbecil a vários níveis. Só um “grande susto” (colocar um animal cercado a uma altura tremenda e obrigá-lo a saltar dali para escapar a uma morte pelo fogo) já é desumano. Pura e simplesmente desumano. Não tenho dúvidas quanto a isto: uma pessoa que se regozija com a ideia de celebrar uma festa pregando “um grande susto” a um gato é uma má pessoa. Não há volta a dar-lhe. Mas é pior ainda quando o “grande susto” termina como vemos neste vídeo: com um animal inocente, que não faz ideia do que é uma “tradição”, a fugir em chamas enquanto o povo ri e aplaude e festeja. Aí já não estamos a falar de meras más pessoas. Nenhum ser humano que acha divertida uma festa que termina com um ser vivo em chamas pode ser um ser humano decente. Qualquer ser humano que acha divertida uma festa que termina com um ser vivo em chamas é, lamento dizê-lo, uma besta psicótica.

Eu não quero acreditar que há só bestas psicóticas em Mourão. De certeza que há pessoas boas e decentes que compreendem o quão errado e indesculpável é este procedimento, por isso não vou fazer generalizações.

Vou só explicar aquilo que, quanto a mim, pode significar manter esta tradição sinistra e cruel.

Num primeiro nível, significa fazer mal a um ser vivo inocente, o que é errado. Mas pronto – isso é um argumento que pega pouco em Portugal, país que tem enraizada a ideia de que os bichos ou são para comer, ou são para matar – por desporto, espectáculo ou tradição. A um nível geral, somos um país que se está pouco borrifando para os animais, por isso condenar um mau trato, apesar de ser algo que vale sempre a pena fazer, é frequentemente inútil.

Mas pensem nisto: há crianças em Mourão a crescer com a ideia, bem impressa na sua mente, de que não só é possível – como é recomendável e muito apreciado pelos adultos – torturar física e psicologicamente um animal. Para as crianças de Mourão, isto valida qualquer brutalidade que se faça nos outros 364 dias do ano. Se um gato pode ser posto em chamas naquela noite, porque diacho não pode ser posto em chamas, picado, cortado, em qualquer altura do ano? E quem diz gatos diz cães. Ou outro animal qualquer. Celebrar a Queima do Gato com um gato real é dizer às crianças: “Este grau de violência é giro”.

Crescer com a ideia arrogante de que é divertido e socialmente aceitável fazer mal aos animais é grave. Porque não é só “fazer mal aos animais” (o que já é muito). É abrir as portas para que se faça mal a tudo – incluindo a seres humanos. Perde-se rapidamente o sentido do Bem e do Mal. Basta passar os olhos por algumas biografias de assassinos psicopatas para perceber que muitos deles têm em comum o gosto infantil e juvenil pela tortura de bichos. Não estou com isto a sugerir que anos e anos de tradição da Queima do Gato fez das pessoas de Vila Flor assassinos psicopatas; mas uma coisa é certa: depositou-lhes no coração uma semente do Mal, e é mesmo aquele Mal com artigo definido e letra maiúscula.

Lamento, mas quem faz uma festa assim não tem bondade nem decência dentro de si.

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