Agora eu era um amigo imaginário

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Eu costumava ser um purista das versões originais. E, bem vistas as coisas, ainda sou: é maravilhoso ouvir grandes actores americanos em rédea solta – porque o que se passa lá é que as falas são gravadas primeiro e só depois, moldada a elas, é que se faz a animação. Quando fui desafiado para participar na primeira dobragem da minha vida – a versão portuguesa do filme da Aardman / Dreamworks, Por Água Abaixo, em 2005 – o meu sentimento era dúbio: adorei o ofício, mas senti que estava a fazer mal ao trabalho de um mestre como Andy Serkis (era ele que fazia a voz do rato vilão Spike, na versão original). Foi quando entraram crianças aos magotes na minha vida – o meu filho, claro, mas também os sobrinhos – que percebi, verdadeiramente, a nobreza deste trabalho e a necessidade de ele existir, sem com isso retirar a importância das versões originais. Num mundo ideal haverá sempre a possibilidade de escolha.

Hoje estreia aquela que é, possivelmente, a melhor dobragem em que já participei na minha vida. Primeiro porque, apesar de já ter dobrado bons filmes de animação, desta vez calhou-me uma obra-prima absoluta de imaginação, conteúdo, forma. Divertida-Mente (Inside Out), de Pete Docter e Jonas Rivera, duas das mais imaginativas almas da Pixar, é o tipo de ousadia com que a Disney, desde os seus primórdios, eleva a fasquia para esta nobre arte. Já me diverti muito a fazer dobragens – estamos sozinhos num estúdio com um ecrã à frente a ter o primeiro contacto com o filme – mas ao trabalhar em Inside Out sob a direcção desse mestre absoluto que é o Carlos Freixo, um dos artistas a quem Portugal deve a grande reviravolta na arte da dobragem, com o lendário O Rei Leão, a coisa foi diferente. Muitas vezes perdi o timing de deixas pela simples razão de que estava embasbacado a olhar para as imagens e os conceitos novos, originais que desfilavam à minha frente. Não só isso como, pela primeira vez, fiquei genuinamente emocionado num trabalho destes. O Bing Bong entranhou-se-me na alma. Acho que até cheiro a algodão doce e tudo.

Bing Bong é uma personagem surpreendente do universo de Inside Out. Na promoção do filme ele é mantido em discreto mistério, sendo as vedetas dos trailers a jovem Riley e as emoções que a controlam, dentro da sua cabeça – Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Repulsa. Mas – sem entrar em grandes revelações para não estragar as inúmeras surpresas que o filme tem dentro – Bing Bong, amigo imaginário criado por Riley na sua infância, em risco de ser esquecido quando a jovem começa a entrar em passos largos na adolescência, acaba por ter uma importância na narrativa que me acertou em cheio no estômago. Eu julguei que a Disney me tinha contratado para fazer a voz de um “comic relief” secundário nesta história, e por mim isso chegava. Quando começo, já no estúdio, a ver esta personagem imaginária crescer, este ser com tromba de elefante, cauda de gato e corpo de algodão doce a ganhar densidade, temi não estar à altura de todas as nuances. Honra seja feita ao Carlos Freixo, que me arrancou das cordas vocais uma criatura que eu não sabia que existia aqui dentro. O processo deu trabalho, mas no fim sentia-me feliz e pronto para relaxar numa cama de rede. Acho que o trabalho ficou digno e tocou-me de uma maneira que ultrapassa a já de si grande honra de ser convidado pela Disney para participar na versão portuguesa deste extraordinário achado de cinema.

A verdade é que o meu filho desenha criaturas muito parecidas com o Bing Bong. Aos seis anos de idade, ele está na fascinante fase em que as criaturas que lhe fazem sentido são misturas entre animais de estimação, dinossauros, robots. Sentir no filme o receio de Bing Bong de ser esquecido lembrou-me que não falta assim tanto para o Pedro chegar à idade de Riley e para, possivelmente, os seus Bing Bongs pessoais entrarem em risco de extinção, com tudo o que isso acarreta para pais lamechas como, no fundo, eu sou.

Acredito que um filme não precisa de ser uma obra-prima do cinema para nos tocar. Às vezes tem mais a ver com contexto, com fases da vida, do que com qualidade cinematográfica. Eu adoro o Couraçado Potemkine, mas vi-o menos que Os Goonies. Eu adoro As Regras do Jogo, mas vi-o menos que Os Caça-Fantasmas.

Divertida-Mente (Inside Out) consegue aquela maravilhosa proeza de ser uma obra-prima e um filme emocionalmente relevante para esta altura da minha vida, de cuja versão portuguesa tenho a alucinante honra de fazer parte.

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